Thursday, October 25, 2007

36. urze [Erica]

um dia, depois de uma vida inteira
consagrada a Botânica, Ele aproximou-se de mim,
como um simples pressentimento, ou sombra amarelada.
eu sabia que Ele estava a par de tudo,
mas demorou tanto tempo, foram precisos tantos anos
percorrendo jardins, labirintos, bosques,
que eu já não via senão o modo
como as melancólicas águas do regato
sob o verde se infiltravam.
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«não estejas triste», disse, «por o Jardineiro
não me ter podido enviar antes. Ele quis
que tu aprendesses à tua custa
como nestes ermos convivem, em estranha harmonia,
a sombra e a luz, as ervas rastejantes
e os imponentes troncos, os dias de bonomia
e os dias de tempestade.
porque ninguém pode fazer a experiência
do sofrimento por nós; e é com as injustiças
que vamos renascendo, como estes arbustos
que por toda a parte proliferam, triunfando cada ano
das forças da morte.»
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senti o braço do pai, do bom mensageiro.
olhei, era só uma longa haste,
tão seca como racional, negra, fina, nítida.
mas na sua ponta brilhava já uma folha,
o inacreditável verde de uma folha,
com a sua geometria de nervuras,
o seu brilho de gotas.
e em cada uma delas se espelhava,
ao longe,
um pequeníssimo olhar reconfortado.
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assim percebi que o meu ser podia ser aquilo,
um campo sereno, coberto de urzes.
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Vítor Oliveira Jorge
Novo Florilégio. Contributos para uma Extática Botânica

Afrontamento, 2007, p. 108

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